Três conhecedores do maior de todos os tambores falaram do presente e do futuro do sopapo no Município
Por Joice Lima 24-05-2018 | 17:18:43
No final da tarde de quarta-feira (23), na Secretaria de Cultura (Secult), ocorreu a primeira edição do projeto Conversas do Dia do Patrimônio 2018 – uma série de encontros com palestrantes, que antecedem o Dia do Patrimônio, que este ano será realizada entre 17 e 19 de agosto, com o tema “Pelotas Imaterial: saberes, fazeres, ofícios”. A primeira Conversa reuniu três autoridades no assunto para falar de um instrumento que, apesar de pouco conhecido, é extremamente importante para a história cultural de Pelotas: o tambor de sopapo.
O maior de todos os tambores foi inventado por escravos que trabalhavam nas Charqueadas pelotenses – há registros de seu uso em 1826 –, feito originalmente com casca de árvore e couro de cavalo.
“Temos um rei aqui em Pelotas. Esse rei é um tambor”, disse o músico Kako Xavier, um dos três convidados a compor a mesa.
Há anos, Kako se dedica a estudos e ações que envolvem tambores e, desde 2013, desenvolve a Tamborada, um projeto que congrega um violão (o próprio Kako) e, no momento, 47 tambores. Os ensaios ocorrem na Casa do Tambor, um espaço criado por Kako na praia do Laranjal. Em 2016, conseguiu financiamento do Procultura para a construção de 12 tambores de sopapo e ações de divulgação entre estudantes e, na próxima segunda-feira (28), lança o CD da Tamborada, Agora somos nós, na Bibliotheca Pública Pelotense.
A ideia de Kako é “deixar esse passado mais presente”, ao despertar o sopapo. Ao mesmo tempo, acredita que está na hora de pensar em um discurso de futuro para a estrada negra, um futuro mais positivo. O brilho no olhar e o tom da voz, ao lançar a provocação, denotam a paixão pelo que faz e o respeito ao sopapo:
“Precisamos dar uma mexida no cenário da cidade. Quero lançar aqui uma sementinha: de que juntos a gente pense ações para que os pelotenses conheçam e se identifiquem com o tambor de sopapo. A cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, pode ser ‘o centro dos tambores’. Motivos nós temos de sobra, afinal... o rei mora aqui”.
“A primeira relação da criança com a mãe é percussiva: a batida do coração”, destaca outro convidado, Dilermando Freitas. Mestre griô viaja a muitos estados brasileiros levando a cultura afro-pelotense. “O tambor presenciou o sofrimento dos escravos, mas também é um representativo espiritual positivo. Ele agrega as pessoas”, afirma Dilermando.
“Não se constrói um tambor apenas com um pedaço de madeira (árvore), um pedaço de couro (animal) e um pedaço de ferro. Essas coisas ‘participam’, mas apenas ganham vida quando a gente põe a mão e acredita que está perante toda a nossa ancestralidade. O mestre Baptista consagrou esse instrumento a Xangô, o mais forte e robusto orixá, o orixá da Justiça”, destacou.
Tanto Kako, quanto Dilermando e também o terceiro convidado, o professor da UFPel, Mario de Souza Maia, reverenciaram Giba Giba e Mestre Batista (veja abaixo) que, apesar de não estarem mais vivos, foram as maiores sumidades de Pelotas quando o assunto é sopapo. Maia lembrou que, após ter caído no esquecimento durante todo o século XX, na virada do século e princípio do XXI, Giba Giba, que tocava sopapo, criou o Festival Cacobu, em homenagem a três grandes sopapeiros: Cacaio (Ca), Boto (Bo) e Bucha (Bu). “Pela primeira vez, em muito tempo, o festival trouxe visibilidade ao instrumento e sua origem.” Maia obteve o título de Doutor em Música (etnomusicologia) pela UFPel, em 2008, com a tese: “O Sopapo e o Cacobu: etnografia de uma tradição percussiva no extremo sul do Brasil”.
“Quando se fala em patrimônio, automaticamente as pessoas pensam no conjunto arquitetônico dos casarões, mas não lembram que quem construiu esses prédios históricos foi a mão escrava. Ainda se prefere falar na cultura branca e ‘esquecer’ o passado escravocrata do Município. A gente ainda está devendo muito”, disse o professor da UFPel.
“E quem dava o combustível ao povo escravizado das Charqueadas?”, questiona Kako, e ele mesmo responde: “o tambor”. Mas, esclarece, diferentemente do que muita gente pensa, o tambor não era usado apenas para celebrações e festividades. Ao trabalhar nas Charqueadas, os escravos carneavam vacas diariamente e, antes de tirar a vida de outro ser, usavam o toque do tambor para estar em contato com seus orixás. “Era um pedido de licença.”
Apesar de boa parcela do Rio Grande do Sul já reconhecer o tambor de sopapo como elemento hereditário da cultura negra gaúcha, na prática, a hegemonia da cultura branca ainda impera. “Vamos construir e colocar um sopapo ao lado de cada piano, nas salas de aula do curso de Música da universidade. É uma ação política e cultural, que busca dar maior visibilidade ao instrumento”, explicou Maia.
No final do encontro, várias pessoas apresentaram propostas de ações com vias a divulgar o instrumento no Município, tais como eventos musicais no Mercado e em escolas, saraus poéticos e até de material educativo a ser distribuído a estudantes da rede pública de ensino de Pelotas.
Músico e sambista, Neives Meirelles Baptista dominava a técnica de construção do tambor de sopapo. Mestre griô, morreu em 2012, aos 77 anos.
Cantor, compositor, percussionista e ativista cultural, Gilberto Amaro do Nascimento morreu em 2014, aos 73 anos.
Confira a galeria de fotos da reportagem neste link do Flickr da Prefeitura.